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sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O respigo da Semana : Nato, Libia, Refugiados e Mentiras


Para o “respigo” desta semana escolhemos a última crónica de Alexandra Lucas Coelho, uma arrebatante denuncia da hipocrisia do Ocidente na forma como tem tratado o drama dos refugiados :

“Mentiras de guerra, 235 mil à espera ou um pedaço da Lua
Por  Alexandra Lucas Coelho  
 In Público de 18/09/2016 - 07:30

 O Ocidente pode montar um confessionário para o pecado de desfazer países, fazer até fila. Entretanto, milhões de pessoas desses países que já não existem continuam a sonhar com um lugar que nunca existirá para eles chamado Europa”.

“1. A guerra da NATO na Líbia foi baseada em mentiras, levou ao caos e fortaleceu o ISIS, concluiu agora o parlamento inglês. Enquanto isso, na Líbia, a ONU contabilizava 235 mil refugiados de toda a África à espera de um barco para Itália, fora os que não se registaram. E um pedaço da Lua caído no deserto da Líbia podia ser comprado online. Um estado do mundo na rentrée sem sair da Líbia.

“2. 27°22.17'N 16°11.93'E. Pondo esta coordenada no google, fui dar a um ponto logo abaixo do território líbio controlado pelo ISIS neste momento. O lugar não tem nome no atlas local, mas caçadores de meteoritos baptizaram-no como Dar al Gani, para os íntimos, DaG. Um meteorito é todo o pedaço de cometa, asteróide ou planeta que cai na Terra. Pode, pois, cair em qualquer cabeça terráquea, embora não haja muitos certificados de ocorrências. Se tiver trinta toneladas, o que já aconteceu, não será difícil reconhecê-lo, mas há muitos fragmentos com gramas que só se localizam facilmente em lugares como Dar al Gani: um planalto antigo, de superfície clara, com baixo nível de erosão, aridez durante longos períodos de tempo, rápida eliminação de águas de superfície, ausência de ventos abrasivos com areia de quartzo, uma atmosfera química contrária à ferrugem. A clareza da superfície permite identificar de imediato a escuridão dos meteoritos, e todas as restantes condições permitem preservá-los. Isto, ao longo de 200 quilómetros de extensão por 60 de largura. Alguns dos meteoritos de Dar al Gani estão em museus mas muitos vão parar ao Mercado de Meteoritos, online. Fiquei a saber que isso existia quando esta semana recebi um mail com o título “Fragmento da Lua em leilão. Achei que fosse o anúncio de algum livro de poemas, mas era um “press release” de uma agência de comunicação, e dizia: “Está em leilão um meteorito encontrado em Dar al Gani, no deserto da Líbia, e analisado por uma instituição ligada à NASA, que confirma que a sua composição é semelhante à das amostras trazidos da Lua por Apollo 14 e Apollo 16.” Preço estimado: 8000 euros. Bastava seguir os links do próprio “press release” para perceber que não se tratava de todo o meteorito, que pesa 1425 gramas, e foi oficialmente baptizado DAG400, mas de um fragmento com 4,46 gramas. Esse fragmento é que tem um preço estimado até 8000 euros. Pesquisando um pouco mais no Mercado de Meteoritos arranjam-se uns fragmentos mais em conta. Vi um com 0,11 gramas por 160 dólares (0,11 gramas?) E para quem prefira os marcianos, também há, pelo menos por enquanto. Os que vi, vieram todos da Líbia muito antes da guerra de 2011, e da emergência do ISIS. Sobre o que se passa em Dar al Gani neste Verão, não tenho notícias. É possível que parte dos refugiados africanos que sobem até à Líbia tenham cruzado esse planalto coberto de fragmentos extraterrestres. Ou que o ISIS tenha percebido que podia pô-los a render, e tenha já o seu próprio mercado alternativo online.

“3. Todos aqueles africanos que já sobreviveram a perseguições e toda a espécie de violência concentram-se em Trípoli, Misrata, Benghazi, os portos da costa líbia, na esperança de enfiarem um colete laranja pelo pescoço e seguirem num bote até à Sicília, como 120 mil já fizeram só este ano, e mais de três mil não chegaram a fazer porque morreram. Entre Misrata e Benghazi há o porto de Sirte, mas esse não consta das rotas de fuga, é a base do ISIS para a sua luta pelo controlo das instalações petrolíferas da Líbia. E a Líbia é um paiol de armas esquartejado por vários poderes, sem solução à vista. Se no começo de 2011 alguém tivesse projectado o pior possível para 2016 não ia conseguir chegar a algo tão mau.

“4. O resultado da intervenção da NATO em 2011 foi “um colapso político e económico, guerra entre milícias e entre tribos, crises humanitárias e de migração, violações alargadas dos direitos humanos, a proliferação das armas do regime Kadhafi pela região e o crescimento do ISIS no Norte de África”, diz o relatório da Comissão de Negócios Estrangeiros do Parlamento do Reino Unido. Com uma maioria de deputados do Partido Conservador, o comité condena duramente a participação britânica na guerra, liderada então por David Cameron, mas aprovada de forma esmagadora por 557 deputados, contra 13. “Não encontrámos provas de que o governo tenha levado a cabo uma análise séria da natureza da rebelião [contra Kadhafi] na Líbia”, dizem agora esses mesmos deputados no relatório. “A estratégia do Reino Unido baseou-se em pressupostos erróneos e numa compreensão incompleta das informações”, não conseguindo “identificar que a ameaça [de Kadhafi] aos civis era exagerada e que os rebeldes incluíam um elemento islamista significativo”. Ou seja, a ideia de que Kadhafi se preparava para massacrar civis em Benghazi terá sido comprada pelos governos ocidentais aos rebeldes sem provas que a confirmassem, ao mesmo tempo que no meio desses rebeldes estavam os embriões de vários grupos extremistas, como o ISIS, que aproveitaram a guerra ocidental para fazerem base ali. O relatório também diz que a França tinha objectivos políticos e económicos, não humanitários, e que a rebelião não teria sido bem-sucedida sem a intervenção externa. Milhares morreram na sequência dessa intervenção (aliás aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, em nome da protecção de civis) e centenas de milhares ficaram desalojados, transformando a Líbia num estado falhado.

“5. Talvez muitos dos 557 deputados britânicos que aprovaram a intervenção durmam melhor este Outono-Inverno, depois de baterem no peito em mea culpa, embora pelo relatório pareçam bater no peito alheio. O Ocidente pode mesmo montar um confessionário para o pecado de desfazer países, fazer até fila. Entretanto, milhões de pessoas desses países que já não existem continuam a sonhar com um lugar que nunca existirá para eles chamado Europa, e enquanto assim for, na melhor das hipóteses, ainda estarão vivos”.

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